A reportagem é de Maurício Hashizume e publicado pela Agência Repórter Brasil, 27-02-2014.
A história dos dois imigrantes bolivianos que estavam sendo “vendidos” no centro da maior cidade do Brasil, em pleno domingo (9 de fevereiro), teria sido outra não fosse a solidariedade de pessoas que decidiram acionar as forças policiais diante do tipo bizarro de “comércio” que transcorria em via pública.
Enquanto os dois homens aguardavam pacientemente o dono da confecção para a qual trabalhavam em Cabreúva (SP), no interior paulista, tentar concluir o referido “negócio” estipulado em R$ 1 mil por cada um, a Polícia Militar foi chamada. Segundo relato de testemunhas à imprensa, os trabalhadores estrangeiros acabaram sendo revistados, enquanto o patrão, também boliviano, aproveitou para fugir do local.
Em Sucre, na Bolívia, a Repórter Brasil conseguiu encontrar um dos trabalhadores, que, mesmo receoso e ainda impactado, deu o seu testemunho acerca do ocorrido. “Se não acontecesse o que aconteceu, nós continuaríamos dependentes do dono da oficina. Não teríamos feito nada por iniciativa própria. Não conhecemos nenhuma rua da cidade e não falamos português. Você acha que nós fugiríamos para onde?”
Segundo esse ex-imigrante, que prefere manter a sua identidade anônima, os dois, que são primos, foram convencidos a trabalhar no Brasil por meio de um conhecido, que chegou a citar ganhos mensais de cerca de US$ 500. Um deles, o mais velho, de 21 anos, trabalhava como pedreiro em Sucre, capital constitucional da Bolívia, e a oportunidade de trabalho lhe pareceu interessante. A decisão de seguir ao país vizinho foi tomada junto com o mais novo, de 19 anos.
Dívida e fome
O combinado era o seguinte: eles deveriam comparecer já no dia seguinte na rodoviária da cidade para partir para Santa Cruz de la Sierra, no leste do país. Todo o trajeto restante até o Brasil seria garantido por um “agente”, que daria as coordenadas seguintes. Durante o percurso, eles teriam permanecido por dois dias na capital paraguaia, Assunção, onde chegaram a passar fome. Na rota feita por muitos que vêm “tentar a sorte” no Brasil, teriam inclusive sido assediados por outros “agentes” em busca de mão de obra para oficinas têxteis.
Em nenhum momento, contudo, deixaram se seguir as instruções recebidas pelos aliciadores. Constituía-se, então, uma dívida dos dois jovens imigrantes para com uma pessoa do outro lado da fronteira que estava arcando com os gastos da vinda deles. Nesse caso específico, foi encontrado até um comprovante de uma transferência internacional a terceiros feita pelo próprio dono da oficina, que mantinha um caderno com anotações de despesas de transporte, alimentação e outras cobranças adicionais.
Trazidos ao Brasil, foram levados até Cabreúva (SP), onde receberam a informação de que o salário não seria de US$ 500, mas de R$ 700 brutos (abaixo do salário mínimo nacional que, desde o início de 2014, está fixado em R$ 724). Souberam também que não receberiam nada nos primeiros meses de trabalho na oficina anexa ao alojamento, por conta do que já tinha sido gasto, e que haveria descontos adicionais também por gastos de consumo: os dois teriam, por exemplo, que contribuir pelo menos com R$ 6 a cada dia pela alimentação.
De acordo com a vítima, eles operavam as máquinas das 6 horas às 21 horas (15 horas diárias), com uma pausa de meia-hora de almoço e folga apenas aos domingos. Mais de 20 pessoas (inclusive algumas famílias inteiras, todas vindas da Bolívia) dividiam dois quartos e um único banheiro. Descontentes com a situação, teriam dito, após uma semana, que não estavam dispostos a continuar naquele esquema e que gostariam de retornar ao país de origem.
Depois de ouvirem o patrão dizer que as outras pessoas “trazidas” como eles estavam aguentando normalmente o trabalho nas máquinas de costura (produzindo calças, camisas, blusas etc.) e de até terem sofrido ameaças, acabaram sendo literalmente objeto de negociação por parte do empregador.
Todos se dirigiram, assim, até a região do Brás, no centro da metrópole paulistana, para que o patrão concretizasse a venda a algum par. Foi nesse momento que a PM foi chamada e os dois foram levados até uma unidade policial, onde não registraram ocorrência por receio de represálias. A partir daí, entrou em cena uma série de instituições, órgãos e particulares que atuam cotidianamente com os imigrantes, como o Centro de Apoio ao Migrante (Cami), alguns membros conhecidos da comunidade e o Consulado de Bolívia que, na sequência, providenciou a viagem de volta dos dois.
Dono da oficina localizado
De imediato, representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) passaram também a tratar do caso, inclusive para tentar garantir os direitos trabalhistas das vítimas. Firmou-se um acordo com a Atmosfera Gestão e Higienização de Têxteis, empresa que – por ter sido a principal beneficiada da exploração das vítimas que trabalhavam na confecção – foi considerada responsável pela situação que envolveu não apenas os dois bolivianos, mas também um terceiro, que não foi mais encontrado. Estão sendo vencidos alguns obstáculos para que eles recebam todos os valores correspondentes às jornadas trabalhadas conforme o salário prometido e mais uma indenização por dano moral individual.
Já o dono da oficina foi localizado no próprio município de Cabreúva (SP), em 17 de fevereiro, por uma fiscalização realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, composto pelo MTE, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Defensoria Pública da União (DPU/SP) e pela Polícia Federal (PF), e acompanhada também pela Repórter Brasil. Ele, que pode sofrer um processo criminal em decorrência do encaminhamento do caso a autoridades competentes, admitiu ter pago a passagem de ambos e de um terceiro. Afirmou ainda ter levado o grupo à capital para tentar “ajudá-los” a conseguir outro emprego.
De volta a Sucre, o trabalhador ouvido pela Repórter Brasil se diz aliviado. Prestes a iniciar um outro trabalho em cidade distante, mas dentro da Bolívia, ele demonstra arrependimento. ”Falam aqui na Bolívia que as pessoas ganham muito dinheiro no Brasil. Mas, chegando lá, eu descobri outra coisa. Minha vida aqui é melhor.”
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/528769-se-nao-conheciamos-nada-da-cidade-e-da-lingua-fugiriamos-para-onde-diz-imigrante-vitima-de-trafico-de-pessoas
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