Crime é considerado um dos mais invisíveis e complexos de se investigar. Falta de conhecimento da sociedade sobre o assunto e frequente recusa das vítimas em cooperar são dois dos fatores responsáveis. A Campanha da Fraternidade deste ano alerta para o problema e investe na prevenção.
Em 1998, a cearense Silvania Cleide Barros Vasconcelos foi condenada pela Justiça Federal a quatro anos de reclusão por traficar mulheres para o estrangeiro. No inquérito, duas vítimas relatam como foram abordadas por ela na Beira Mar, em Fortaleza, e receberam convites para trabalharem como garçonetes no restaurante de seu suposto marido em Paris. As duas fortalezenses viajaram juntas, com todas as despesas pagas por Silvania, incluídos os custos com a emissão dos passaportes e passagens áreas. Mas quando chegaram à capital francesa, foram encaminhadas a uma casa de prostituição em Tel-Aviv, Israel. A fuga de uma das mulheres foi o que revelou o esquema.
A cearense foi condenada. No entanto, outras dificuldades na investigação, incluindo até a escassez de tradutores no Ceará da língua hebráica, inviabilizaram a condenação dos estrangeiros envolvidos no crime, a exemplo do suposto marido de Silvania, um israelense que trabalhava como segurança na casa de prostituição em Tel-Aviv e que teve seu crime prescrito em 2009.
De 1998 pra cá, apenas outros 4 casos foram julgados pela Justiça Federal no estado, todos com características parecidas de aliciamento e exploração sexual em território estrangeiro.
Infográfico retirado do informativo "Copa 2014 - O que as mulheres têm a ver com isso?", do ESPLAR (arte: Rafael Salvador)
“É um número baixo”, constata Nilce Cunha, procuradora da República no Ceará e integrante do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. “Todo mundo sabe que existe, mas não dá processo porque não têm informações consistentes, não tem aquela denúncia formal com dados suficientes pra polícia investigar e apurar. Sempre se atribui isso à falta de informação. A rede de enfretamento, que é composta pelos órgão públicos e sociedade civil, dá informações de que existem moças, mulheres, trans(sexuais), na ilusão de que vão conseguir ganhar muito dinheiro e ninguém sabe o que acontece com elas lá. Mas não existindo as denúncias, não existe processo.”
A última sentença é de 2012, quando uma carioca residente na Espanha foi condenada – pela segunda vez, depois de recorrer do primeiro julgamento – por aliciar mulheres em Fortaleza com promessas de emprego em um bar na cidade espanhola de Llanes. Antes disso, em 2004 e 2007, foram julgados os dois casos mais emblemáticos no estado.
No mais recente destes, um alemão e duas brasileiras foram condenados por integrar uma quadrilha que agenciava garotas para alemães em visita a Fortaleza, quando não as enviava para temporadas na Alemanha. O esquema era gerenciado da Europa por outro alemão – que continua impune – através de um site que reunia as fotos das garotas. Os clientes estrangeiros escolhiam as companhias previamente.
No outro caso, julgado em 2004, o cearense Francisco de Assis Marques de Aguiar foi condenado a 30 anos e 8 meses de prisão e seu comparsa, o baiano Valdinei Ramos dos Santos, a 15 anos. Na busca na casa de Assis, a Polícia Federal encontrou provas que dão uma ideia da extensão da quadrilha que traficava mulheres para a Espanha principalmente: "constam anotações encontradas na residência do réu de cerca de 525 nomes e telefones, além de recados, informações de vôos e bilhetes aéreos para o exterior, contas bancárias no exterior, despesas com passaportes, rascunhos de anúncio de prostituição. Destacam-se os documentos onde aparecem anotações que condizem com os depoimentos de [nome de uma das vítimas], ou seja, uma espécie de tabela de preços em pesetas de atividades sexuais por 20 minutos, 45 minutos e uma hora, o que ficaria para a 'casa' e para a 'Menina', preços de champagne, sucos, passagens, biquinis e calcinhas."
Foram encontradas também “fotografias de mulheres para passaporte, farto material pornográfico, bilhetes manuscritos por propensas vítimas, comprovantes de remessa de dinheiro proveniente do exterior em favor do acusado, diversos extratos telefônicos, etc." Um dos extratos obtidos pela investigação policial, abragendo um período de 10 anos entre 1993 e 2003, registrou um total de “297 ligações internacionais (sendo 52 para a Alemanha, 02 para a Bolívia, 01 para a Venezuela, 01 para a Bélgica, 131 para a Espanha, 106 para os Estados Unidos e 04 para Portugal), além de centenas de ligações para São Paulo, São Luís, Rio de Janeiro, Aracaju, Recife, Campos Sales, São Carlos, Uruburetama, Salvador, Niterói, Barreira, Redenção, Brasília, Jacone, o que”, conclui o juiz, “demonstra intensa comunicação do réu com pessoas no exterior e em vários estados brasileiros".
Doze inquéritos na Polícia Federal
Os casos variam quanto a fraude ou não do trabalho a ser exercido no exterior – algumas viajam acreditando que serão garçonetes, camareiras, cabeleireiras etc., enquanto outras já exercem a prostituição no Brasil e aceitam a proposta atraídas pela promessa de altos rendimentos. Em comum está o desconhecimento da condição análoga à escravidão em que serão mantidas, geralmente em cárcere privado, com a retenção de seus documentos e passaporte, e o aprisionamento pelas crescentes dívidas, que começam com os custos da viagem e se avolumam com o altos preços cobrados por hospedagem, alimentação e até multas por descumprimento das rígidas regras das casas de prostituição.
Apesar de serem enganadas, muitas das vítimas resistem à denúncia após conseguirem se libertar. Motivos como o medo de represálias se confundem muitas vezes com uma espécie de lealdade ao traficante, que apesar de tudo teria lhe ajudado a tentar uma vida melhor no exterior. “A gente tem uma dificuldade por conta disso, a vítima não quer aparecer e também não quer denunciar, às vezes acha que a pessoa ajudou.”, comenta Juliana Pacheco, delegada da Polícia Federal.
Segundo a chefe da Delegacia Institucional da PF no Ceará, responsável pelas investigações dos crimes de tráfico internacional de pessoas, atualmente 12 inquéritos do tipo tramitam em segredo de justiça: “É um crime muito complicado porque a vítima não se acha vítima, às vezes se prostitui aqui, aí é oferecida uma quantia, vai ganhar 3 mil dólares, 4 mil dólares fora, só que chega lá a realidade é bem diferente. A pessoa fica em cárcere privado, tudo paga, aluguel, comida, e elas têm medo de denunciar também porque não se acham vítima. Elas não acham que foram enganadas. E foram vítimas, sim, tem que denunciar.”.
De acordo com o “Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011” (https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//noticias/2013/04/2013-04-08_Publicacao_diagnostico_ETP.pdf), a Polícia Federal abriu nesse período em todo o país 157 inquéritos por tráfico internacional de pessoas. No entanto, apenas 91 processos foram abertos pela Justiça Federal. Quanto a prisões e indiciamentos, a PF indiciou 381 suspeitos, dos quais 158 foram presos.
A prevenção
Os casos variam quanto a fraude ou não do trabalho a ser exercido no exterior – algumas viajam acreditando que serão garçonetes, camareiras, cabeleireiras etc., enquanto outras já exercem a prostituição no Brasil e aceitam a proposta atraídas pela promessa de altos rendimentos. Em comum está o desconhecimento da condição análoga à escravidão em que serão mantidas, geralmente em cárcere privado, com a retenção de seus documentos e passaporte, e o aprisionamento pelas crescentes dívidas, que começam com os custos da viagem e se avolumam com o altos preços cobrados por hospedagem, alimentação e até multas por descumprimento das rígidas regras das casas de prostituição.
Apesar de serem enganadas, muitas das vítimas resistem à denúncia após conseguirem se libertar. Motivos como o medo de represálias se confundem muitas vezes com uma espécie de lealdade ao traficante, que apesar de tudo teria lhe ajudado a tentar uma vida melhor no exterior. “A gente tem uma dificuldade por conta disso, a vítima não quer aparecer e também não quer denunciar, às vezes acha que a pessoa ajudou.”, comenta Juliana Pacheco, delegada da Polícia Federal.
Segundo a chefe da Delegacia Institucional da PF no Ceará, responsável pelas investigações dos crimes de tráfico internacional de pessoas, atualmente 12 inquéritos do tipo tramitam em segredo de justiça: “É um crime muito complicado porque a vítima não se acha vítima, às vezes se prostitui aqui, aí é oferecida uma quantia, vai ganhar 3 mil dólares, 4 mil dólares fora, só que chega lá a realidade é bem diferente. A pessoa fica em cárcere privado, tudo paga, aluguel, comida, e elas têm medo de denunciar também porque não se acham vítima. Elas não acham que foram enganadas. E foram vítimas, sim, tem que denunciar.”.
De acordo com o “Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011” (https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//noticias/2013/04/2013-04-08_Publicacao_diagnostico_ETP.pdf), a Polícia Federal abriu nesse período em todo o país 157 inquéritos por tráfico internacional de pessoas. No entanto, apenas 91 processos foram abertos pela Justiça Federal. Quanto a prisões e indiciamentos, a PF indiciou 381 suspeitos, dos quais 158 foram presos.
A prevenção
A repressão ao crime é um dos três eixos delimitados pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançada em 2006 e que foi institucionalizada no Ceará em 2011 com a criação do programa estadual e do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP). Desde então, o núcleo, vinculado à Secretaria de Justiça do Estado (Sejus), vem atuando no apoio à repressão e em outros dois eixos: o atendimento às vítimas e a prevenção.
“O núcleo é um local de acolhimento inicial. É uma equipe formada por assistentes sociais, psicólogos e advogados. A ideia é contar com a rede. Mas nós acolhemos inicialmente essa pessoa e a sua família. Fazemos essa escuta inicial diferenciada. Nós já temos aquelas perguntas que ajudam a caracterizar se foi ou não uma situação de tráfico, como foi o aliciamento, tentando pegar informação sobre esses aliciadores. Entender o que essa pessoa tá passando nesse momento, o que ela precisa. A gente vai ajudando a construir o projeto de vida que essa pessoa quer pra esse momento, acompanhamos essa pessoa até onde ela e a equipe acham interessante continuar, sempre respeitando a autonomia dela”, explica a advogada Lívia Xerez, coordenadora do NETP.
Os casos chegam ao órgão através de várias instituições que compõem a rede de enfrentamento ao tráfico. Desde ONGs internacionais que mantêm articulação com a Sejus, até os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e os órgãos de repressão, como as polícias Civil e Federal. Estas articulações também permitem que as vítimas possam ser encaminhadas pelo Núcleo a outros órgãos de assistência social e de saúde, assim como as informações coletadas podem ajudar em futuros inquéritos criminais.
Em 2013, o NETP recebeu 22 denúncias de possíveis casos de tráfico de pessoas. Mas, como pontua Lívia, várias foram descaracterizadas pela própria polícia – ou seja, resultaram em outros crimes ou eram “alarmes falsos”.
Apesar do auxílio na repressão, o foco da atuação do Núcleo é a prevenção. O órgão mantém uma agenda regular de palestras em escolas, em organizações não governamentais, ou abordagens educativas com populações vulneráveis a tal crime, a exemplo de travestis e prostitutas. A formação de multiplicadores também é realizada para ampliar a disseminação da informação sobre o assunto. Nestes espaços, a equipe do NETP se depara frequentemente com uma série de relatos que descortinam a rede aparentemente invisível do tráfico de seres humanos, o que inclui também outras modalidades de tráfico.
Ao grande número de mulheres traficadas para fins de exploração sexual, somam-se também o tráfico para chamado “casamento servil” e para o trabalho escravo de uma forma geral.
No primeiro destes casos, mulheres geralmente são iludidas com propostas de amor e um casamento no estrangeiro que por fim se revela uma cilada – a vítima se transforma em escrava sexual, aliciada também às vezes para cuidar de algum doente ou idoso ou simplesmente proporcionar ao traficante um passaporte brasileiro. “Essa pessoa torna-se explorada sexualmente dentro de um casamento pelo seu príncipe encantado”, resume Lívia.
Este tipo de crime, segundo a coordenadora do NETP, tem se tornado cada vez mais frequente, com vários relatos de tentativas de aliciamento pela Internet, incluindo jovens muitas vezes. “Nós trabalhamos bastante nas escolas com os adolescentes e vemos que eles estão sim recebendo propostas pela Internet, propostas de trabalho ou de amor, casamento. Isso pode ser um trabalho forçado, casamento servil. Os meninos também existem casos de aliciamento pra jogadores de futebol... A gente escuta muito menino dizendo que recebeu um convite pelo Facebook.”
Estas outras modalidades de tráfico não estão previstas no artigo 231 do Código Penal brasileiro, que tipica o crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual. Atualmente os casos investigados são enquadrados em outros artigos afins, como o art. 149, que trata do crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. No entanto, projetos de modificação do Código Penal e de criação de uma lei específica para este tipo de crime tramitam no Congresso Nacional. As diferentes modalidades de tráfico já são previstas, por exemplo, no Protocolo de Palermo, da Organização das Nações Unidades (ONU), promulgado em 2004 pelo Congresso brasileiro.
Na opinião de Lívia Xerez, o assunto tem se tornado mais conhecido da sociedade brasileira nos últimos anos, o que é fundamental para a prevenção do crime: “A novela Salve Jorge (veiculada pela TV Globo entre 2012 e 2013) aguçou a curiosidade da população. Isso está sendo ratificado com a Campanha da Fraternidade. Pra nossa felicidade essa temática vem entrando em espaços que antes não era trabalhada. Principalmente a exploração sexual de travestis e transexuais. Inclusive algumas paróquias têm aberto as portas e falado sobre isso”, ressalta Lívia.
Campanha da Fraternidade
Lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na última Quarta-feira de Cinzas, a Campanha da Fraternidade traz este ano o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e tem como lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou”. A campanha tem como objetivo aumentar o conhecimento da população sobre os riscos envolvidos em propostas tentadoras de trabalho no exterior ou em outras cidades e estados. Além disso, quer chamar a atenção para as situações geradoras de vulnerabilidade social que estão na raiz do crime.
“Nós também vemos que a luta é mais profunda quando se coloca o foco na sociedade, numa política mais justa, numa sociedade governada para o povo, para que haja educação, oportunidade para a juventude, para que responda aos anseios dos jovens para que não busquem esses sonhos fora. Trabalhar por escola, emprego estável, por inserção no mundo da educação, da universidade, tudo isso empodera o jovem por uma solução dentro de seu próprio país.”, enfatiza irmã Áurea Marques, 67, integrante da rede Um Grito Pela Vida.
Formada por religiosas em 2006, a rede tem foco na prevenção do tráfico de pessoas e atua na disseminação de informação sobre o tema, assim como articula as diferentes pastorais sociais, que historicamente já atuam próximas a grupos vulneráveis ao aliciamento dos traficantes.
Pesquisas comprovam que o tráfico de pessoas é um crime diretamente relacionado com situações de miséria e pobreza, o que deixa o Nordeste e, particularmente, Fortaleza no foco destas ações criminosas. Uma das mais relevantes pesquisas realizadas sobre o assunto – a “Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil” (Pestraf, 2002:http://www.namaocerta.org.br/pdf/Pestraf_2002.pdf) – detectou 241 rotas do tráfico interno e internacional de pessoas no país, a maioria delas nas regiões Norte (76) e Nordeste (69).
O tráfico interno, por sinal, é outro problema constatado pelas irmãs em suas viagens pelo interior do estado. Em palestras e rodas de conversas promovidas pela rede, são comuns os relatos de aliciamento de jovens para o trabalho escravo ou de crianças e adolescentes que se prostituem nas beiras de estradas.
“Outro dia fui pra Itaitinga. As lideranças comunitárias contaram detalhes do que acontece na BR-116. Os caminhoneiros carregam as adolescentes, levam pra outra cidade, dão pra outros caminhoneiros e assim por diante. E isso é bem evidente, o povo vê e não sabe o que fazer.”, conta irmã Gabriella Pinna, 67, também integrante da rede Um Grito Pela Vida.
Para as irmãs, a Campanha da Fraternidade deve ser um momento de ampliação dessas reflexões na sociedade como um todo e, particularmente, dentro da própria igreja, que ainda abriga alguma resistência ao assunto, principalmente quando se trata de prostituição.
“Não é porque um é crente ou católica que automaticamente acolhe todo mundo sempre. Seria muito simples.”, diz irmã Gabriella. “Pela nossa experiência, a gente vê que tem pouca informação. Claro, os preconceitos existem bem enraizados. É uma cultura ainda muito machista, isto explica porque também a maioria das pessoas traficadas são mulheres. Mas ao mesmo tempo a gente encontra pessoas que são receptivas, querem conhecer, querem saber, e nossos encontros sempre terminam com uma pergunta. O que podemos fazer?”
Irmã Áurea complementa: “Eu sinto ainda que nós todos, não só a Igreja, todos nós somos chamados a ser mais includentes. Quem é que tem a ousadia de convidar uma mulher prostituta pra fazer a leitura da liturgia. Nós ousamos fazer isso? Nós ousamos chamar um travesti para levar as ofertas por altar? Em que ele é menos puro do que eu?”
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