Pe. Alfredo
J. Goncalves, CS
A frase do título
representa uma denúncia de Mons. João Batista Scalabrini, então bispo de
Piacenza, norte da Itália, no final do século XIX e início do seculo XX.
Scalabrini – denominado “pai e apóstolo dos migrantes” – referia-se aos intermediários
gananciosos e sem piedade que, no fenômeno das grandes migrações históricas da
época, traficavam com a abundante mão-de-obra dos emigrados europeus
(especialmente italianos) para as Américas, a Austrália e a Nova Zelândia.
Segundo historiadores da envergadura de Eric Hobsbawn e Peter Gay, entre 1820 e
1920, mais de 60 milhões de pessoas deixaram o velho continente com o objetovo
de reconstruir a vida nas “terras novas” de além-mar. Vítimas da expulsão em
massa do campo para a cidade, enquanto certa porcentagem se empregava na indústria
nascente, boa parte não conseguia trabalho, tendo de cruzar os oceanos para
fugir de um destino de miséria e fome na Europa rápida e recentemente
urbanizada.
Entre o desemprego,
a pobreza e a necessidade, por um lado, e o desafio de “far l’America”, por outro, interpunham-se os tais “mercadores de
carne humana”. Mercadores, sim, porque
gente sem coração e sem alma diante dos dramas humanos causados pelos efeitos
da Revolução Industrial. Ao contrário, aproveitavam-se da condição e das
esperanças dos emigranets que buscava um futuro melhor para a família,
comercializando inescrupulosamente os seus sonhos de trabalho e pão, pátria e
dignidade. Se é verdade que a mobilidade humana faz parte do direito de ir e vir, também é certo que
muitas vezes tais deslocamentos intercontinentais tornavam-se forçados e compulsórios,
devido ao êxodo rural em massa e as condições extremamente precárias nos países
ou regiões de origem.
Passou-se mais de
um século, porém a frase/denúncia de Scalabrini continua viva e atual, como uma
chaga aberta em pleno século XXI. O tráfico de seres humanos para a exploração
trabalhista ou sexual atualmente atinge milhões de pessoas no mundo inteiro,
como mostram os debates em torno da Campanha da Fraternidade deste ano no,
promovida pela Conferência Nacional dos bispos do Brasil (CNBB). Juntamente com
o tráfico de armas e de drogas, constitui uma das fontes de maior rentabilidade
da economia submersa do mundo globalizado. Verdadeira bomba atômica, oculta e letal,
que silenciosamente fere, mutila e mata, deixando marcas irreparáveis nas vítimas
que sobrevivem e em suas famílias. Os relatos de quem conseguiu escapar de tais
“infernos humanos” não deixam margem a dúvidas!
Nos subterrâneos
sombrios das relações internacionais (e às vezes em plena luz do dia), a rede
mundial do crime organizado não poupa particularmente mulheres e crianças, quando
o objetivo e a exploração ao máximo de sua energia. No fim da linha desse comércio
ilegal e ilegítimo, grande parte dos sonhos se convertem em pesadelos. Como o
continente africano nos tempos da escravidão, o Brasil hoje vem sendo um dos
países que fornecem bom número de “trabalhadores e trabalhadoras” para essas
transações criminosas. O texto-base da CF/2014 traça um quadro preocupante
sobre os pontos nevrálgicos das rotas nacionais e internacionais, bem como da
origem e destino das pessoas envolvidas.
As reflexões e
orientações da CF/2014, iluminadas pela Palavra de Deus, nos colocam diante de
um desafio que interpela a todos e a cada um em particular: o que fazer diante
dessa situação? Três palavras poderiam resumir nossa solicitude pastoral, como
exigência evangélica, e nossas possibilidades de ação social ou política: acolhida,
denúncia e informação.
A acolhida constitui, digamos assim, o DNA
não somente da Pastoral Migratória, mas da Pastoral Social de toda a ação
evangelizadora. No caso dos tráfico de pessoas humanas, a atitude de acolhida
requer uma sensibilidade especial diante das feridas profundas das vítimas, na
maioria das vezes tão difíceis de serem cicatrizadas. Em nível pessoal ou
familiar, eclesial ou social, impõe-se uma solidariedade incondicional para com
aqueles e aquelas que sofreram tais abusos. Não cabem aqui a discriminação e o
preconceito, nem o racismo e a xenofobia. Tampouco cabem limitações
geográficas, eclesiais ou geopolíticas, uma vez que o próprio crime desrespeita
fronteiras de qualquer espécie. Em tudo e por tudo, deve prevalecer a defesa do
direito e da dignidade da pessoa humana – fundamento, fio condutor e coluna
vertebral de toda a Doutrina Social da Igreja.
A denúncia, por sua vez, torna-se a chave
para combater o tráfico nacional e internacional. Neste caso, porém, convém
utizar de prudância: não se trata tanto uma denúncia em nível local e
personalizado, a qual, embora corajosa e profética, pode acarretar perseguições
desnecessárias. Ainda que em determinadas circunstâncias essa postura não possa
ser evitada, o mais indicado segue sendo a denúncia em nível institucional,
envolvendo movimentos e pastorais sociais, entidades, organizações não
governamentais, o conjunto das Igrejas, setores dos governos, da Polícia Federal
e do Ministério Público, bem como os organismos internacionais de defesa dos
direitos humnos. Novamente aqui a ação dever ser ampla, conjunta e abrangente –
isto é, sem fronteiras. Devido ao poder e aos meios inescrupulosos do crime
organizado, a proteção das vítimas e das pessoas que defendem sua causa não
pode ser desconsiderada, ao contrário, deve tornar-se uma preocupação
constante.
Quanto a informação, esta se revela uma condition sine qua non, seja nos pólos e
regiões de origem, seja nos lugares de destino. Números, fatos e rotas do crime
organizado devem ser divulgadas amplamente entre as famílias, associações, escolas,
comunidades, meios de comunicação e em toda a sociedade. A revolução informática
em geral e Internet em particular podem reveler-se um instrumento eficaz no
combate ao traáfico, como de resto o é para os próprios traficantes. Todos os
meios devem ser utilizados para desmascarar e desmantelar a cadeia
internacional do crime organizado em todas as suas ramificações. A informação atualizada
e permanente pode figurar como um verdadeiro antivírus, uma vacina contra a possibilidade de cair na ratoeira do
tráfico, não raro um caminho sem retorno. Semelhante rede, como bem sabemos,
concentra um duplo caráter de risco: encontra-se ramificada em praticamente
todo o mundo e não respeita códigos de conduta, ou pior ainda, segue
rigorosamente o princípio radical da eliminação de “arquivos”.
Tokyo, Japão, 13 de fevereiro
de 2014
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