quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Profecia Coletiva - VRC tecendo Redes de Vida e Libertação no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

Por Irmã Eurides Alves de Oliveira[1]


“Enfrentar o tráfico de pessoas é assumir a ‘causa de Deus’. (...) É ser uma carta de Cristo para o mundo (2cor 3,3), é ser movida/o pelo Espírito da liberdade, pois onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade[2].

1. Introdução

          Fazer  memória agradecida do passado, acolher e viver o presente com paixão e realismo  e abraçar o futuro com esperança militante, em profecia coletiva, tecendo redes de vida e libertação tem sido a motivação e o empenho  de muitas religiosas e religiosos nos últimos tempos e, em particular, neste ano da vida Consagrada.
          Animada pelo espírito pós conciliar de “volta às fontes”, assumindo em fidelidade criativa o seguimento de Jesus de Nazaré, a partir das periferias e fronteiras existenciais, sociais e  culturais, a VRC  tem nas ultimas décadas descoberto na missão em rede um meio privilegiado para viver sua missão profética, respondendo aos apelos do  Deus da vida, presente  nos gritos dos sujeitos emergentes, nos cenários de velhas e novas pobrezas deste tempo hodierno.
         A intenção deste texto não é de fazer uma  abordagem teórica sobre a profecia da VRC e/ou do trabalho em rede, mas tecer algumas considerações sobre o tema e compartilhar alguns pressupostos, aprendizados e convicções que a prática da missão em rede no enfrentamento ao tráfico de pessoas tem nos oferecido, almejando que as mesmas possam ser fios de vida e libertação, que deem novos significados a nossa Consagração/Missão  ampliando as possibilidades, opções, no horizonte da  profecia que nos é legada.
          Seguindo a metodologia do Ver, Julgar, Agir, parto de algumas considerações sobre o tecido social de onde surgem os fios-clamores, que nos interpelam e provocam a unir forças e atuar em redes de solidariedade e profecia; a seguir faço  uma breve fundamentação sobre redes e sua força de profecia coletiva para a VRC; e por fim compartilho algo sobre a missão da  Rede Um Grito pela Vida, no intuito de continuar sensibilizando-nos para esta causa e, quem sabe, servir de luz para o surgimento de outras redes da VRC em respostas aos desafios missionários de nosso tempo.

2.  O tecido social da sociedade contemporânea

 “A realidade é vista melhor a partir da periferia do que do centro (...) Quando eu falo de periferia, falo de limites (...) Uma coisa é ver a realidade a partir do centro e outra coisa é vê-la do último lugar ao qual chegamos”[3].

                  As alegrias e esperanças, as angustias, sofrimentos e clamores que marcam o nosso tempo e afetam a vida do planeta  e  da humanidade, sobretudo das populações empobrecidas, são para nós interpelações de Deus. (cf GS.1)
                São múltiplas e complexas as situações e mediações que compõem o tecido social, a teia da vida na sociedade contemporânea. Analisá-las critica e evangelicamente não é uma tarefa simples. Requer uma hermenêutica dos sujeitos, dos fatos e  do tempo.  Uma mística de olhos abertos, coração sensível e mente criativa para agir e interagir na dinâmica e horizonte do Reino de Deus. 
Para evangelizar, o discípulo, a discípula missionária precisa conhecer a realidade, perscrutando-a com olhos de fé, em atitude de discernimento.  Dada a complexidade da realidade, seu conhecimento implica uma evangélica visão crítica, condição para uma ação eclesial assentada em fundamentos sólidos”[4]
                 A tessitura das relações sociais envolvem o processo de produção e reprodução social da vida nas suas expressões humanas, materiais e simbólicas. Essas relações configuram a sociabilidade humana como uma trama que envolve o social, o politico, o econômico, o cultural, o ecológico, o religioso, questões de gênero, etnia e gerações.  
             Este multifacetário tecido social, caracterizado como um “caleidoscópio”, ou seja, contextos de contínuas, múltiplas e rápidas mudanças. Uma virada histórica, caracterizada por velozes, significativas e por vezes violentas implicações e consequências na vida das pessoas, sobretudo dos pobres e excluídos/as, conforme nos recorda o Papa Francisco na Evangelli Gaudium
“A humanidade vive, neste momento, uma virada histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia, não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida”[5].
                 Olhares atentos para este mundo em mudanças, adentrando nesta trama societária, que batizamos de pós-moderna deparamo-nos com macros e micros cenários sociais, econômicos, políticos e culturais, permeados de fios de dor e sofrimento por toda parte: a economia da exclusão e da desigualdade social que mata, a microfísica das violências  nos lares, nas escolas, ruas e praças; o grito e o gemido da terra ferida e devastada,  que provocam e interpelam  nossas sensibilidades e opções missionarias para além da estritamente eclesial.
                  Apesar do progresso técnico-cientifico, e o tão propagado crescimento econômico, persistem e aprofundam-se assimetricamente, desigualdades e desequilíbrios humanos, sociais e ecológicos, geradores de uma generalizada crise civilizacional, com marcas de dor e destruição em todas as esferas da vida humana e do planeta. Cresce a cada dia a concentração do ter e do poder nas mãos de uns poucos e os altos índices de pobreza e miséria continuam a interpelar nossas consciências. Os pobres são considerados supérfluos e descartáveis. A natureza, as pessoas, as relações humanas, familiares sociais são transformadas em mercadorias, vendidas, compradas e exploradas pelas redes comerciais, midiáticas e dos traficantes de drogas, armas e pessoas.
           Urge, portanto intensificar as redes de solidariedade,  colaboração e profecia, capazes de responder com criatividade evangélica os sinais dos tempos, contrapondo-se a estas redes mortíferas que,  regida pela lógica e ânsia do lucro e do poder, usando meios espúrios de enriquecimento ilícito,  criam e sustentam os regimes de exclusão, guerras e escravidão, dentre os quais  o tráfico de pessoas.
             O trafico de pessoas que denominemos como a “escravidão moderna” é uma das faces mais obscuras da globalização capitalista. Sequestra a dignidade de mais de 30 milhões de pessoas em todo o planeta. Seja para fins de exploração sexual e/ou laboral, para adoção irregular, remoção e venda de órgãos, mendicância, servidão doméstica, casamento servil, atividades ilícitas ou outras. O tráfico humano é uma das mais graves violações da vida e dos direitos humanos de nossa época.  Um crime em rede. Uma rede criminosa tecida com os fios da vulnerabilidade, da pobreza, das desigualdades de classe, etnia, gênero e gerações, da dor e do sofrimento,  dos sonhos e esperanças de pessoas concretas. São ‘Simones, Marias, Valerias, Joãos, Raimundos... Crianças, jovens ou adultos, mulheres e homens de perto e de longe,  que tem os fios de sua existência violados e  envolvidos na tessitura desta triste trama planejada pelos traficantes da liberdade.
“O tráfico de pessoas é semelhante a uma teia/rede, composta por uma infinidade de fios que se cruzam e se entrelaçam. Em cada um deles está uma pessoa, que tem uma história, um lugar de onde partiu e que agora vive marcada por uma trama muito maior do que tudo o que tenha sonhado ou desejado.
No tênue fio de um menino nascido no interior do Norte do Brasil há uma infância marcada por tantas dificuldades que é difícil dizer por qual razão o sonho de mudar a realidade foi crescendo, até se tornar um desejo de sair daquele lugar, de arriscar tudo por algo melhor. Uma de suas poucas alegrias era o futebol, onde o giro da bola, o drible e a magia do gol, faziam sorrir e pensar que viver valia a pena.
Noutro fio, tão tênue quanto o primeiro está uma jovem mulher, bonita e pobre ou, como algumas vezes gostam de dizer, “com poucos recursos”. À sua volta a realidade é de privação, senão da comida ou do conforto, mas ainda assim, ausência de um futuro em que ela se veja feliz. Ela teima em querer e buscar o que deveria ter por direito ou por muito desejar.
O fio de um homem adulto que vê a seu redor uma situação que lhe causa dor e sofrimento. Forte para trabalhar, mas sem emprego ou sem a possibilidade de viver dignamente com aquilo que lhe oferecem. O pouco estudo não o intimida e está disposto a arriscar o que for necessário para melhorar de vida.
Outro fio, tecido num corpo que foi sendo modificado e agora já é difícil afirmar se é ele ou ela, também habitam sonhos e desejos de uma vida melhor, ainda que isso signifique uma quantidade a mais de sacrifício pessoal e distanciamento de sua terra”[6] (Andrade, 2012)

                  Estes fios clamores  que se entrelaçam nos contextos, corpos e subjetividades das pessoas exploradas e traficadas por esta  nefasta rede do mal,  desvela os rasgos do tecido humano e social da sociedade contemporânea.  Rasgos de desumanização, injustiças e idolatria sistêmica. “A civilização do século XXI é profundamente idolátrica seja na economia, na cultura e na politica”[7].
               O Enfrentamento destas realidades  se impõem  para o Estado, e a Sociedade como um urgente imperativo ético-politico. E para a Igreja e  a Vida Religiosa Consagrada, como  um Clamor, um  Grito que clama aos céus,  uma  convocação  à  Profecia Rede.
“Devemos unir as forças para libertar as vítimas e para encerrar este crime sempre mais agressivo, que ameaça, além das pessoas singulares, os valores fundamentais da sociedade, e também a segurança e a justiça internacional, além da economia, do tecido familiar e o próprio viver social” (...) Todos nós somos chamados por Deus para sermos livres, todos somos chamados para sermos filhos e filhas, e cada um, cada uma de acordo com as suas responsabilidades, é chamado para combater as formas modernas de escravidão. Todas as pessoas, culturas e religiões, vamos juntar forças"[8]. ( cf. Papa Francisco)

3.  Trabalho em Redes como Caminho e Horizonte de  Profecia para a  VRC
          
        Deus chama a gente pra um momento novo /de caminhar junto com o Seu povo.
É hora de transformar o que não dá mais / Sozinho, isolado, ninguém é capaz.
(Zé Vicente)

                 Deus chama a gente para um momento novo. Este canto do nosso poeta Zé Vicente, que cantamos e dançamos tantas vezes em nossos encontros e celebrações, nos convoca para ruptura de toda forma de individualismo, fragmentação, e/ou autoreferencialidade na missão. Apresenta a missão em rede como caminho capaz de transformar o que não dá mais, ou seja,  adverte-nos que diante da complexidade e urgências  da realidade, dos inúmeros clamores e dramas da criação e da humanidade, esgotou-se o tempo das praticas privativas e isoladas da minha congregação, do meu grupo, da minha igreja, da minha organização... Só juntos e juntas entre nós e com  outros e outras  somos capazes de sermos eficazes, significativas/os e fieis  na missão profética de despertar o mundo para Deus e para a justiça do Reino.       
“despertem o mundo! Sejam testemunhas de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver! É possível viver neste mundo de forma diferente (...) A radicalidade evangélica não é apenas para os religiosos: ela é exigida de todos. Porém, os religiosos seguem ao Senhor de forma especial, seguem-no profeticamente. É este testemunho que espero de vocês. Os religiosos e as religiosas deveriam ser pessoas capazes de despertar o mundo”[9]. (Papa Francisco)
               Nesta perspectiva é importante compreendermos que atuar em redes e parcerias  é hoje, um imperativo para todo e qualquer grupo social que pretenda interagir e intervir na realidade, pois a sociedade contemporânea é hoje uma sociedade em rede[10] e nós necessariamente  precisamos pensar, estar e agir em rede.

        3.1. Algumas considerações sobre trabalho e organização  em REDES

   “Construir redes significa apostar em relações humanas articuladas entre
pessoas e grupos que, no debate das diferenças, possam ajustar intenções mais
coletivas e produtivas para todos”[11].

                   O tema, a organização e o trabalho em redes e parcerias, tem sido nas  últimas décadas  uma realidade e um desafio constante para estudiosos e atores sociais das múltiplas e diversificadas  instituições comunitárias,  sociais, econômicas, politicas e religiosas. Trata-se de um novo paradigma que tem revolucionado a visão andro e antropocêntrica, autossuficiente, individualista e compartimentada do mundo em que vivemos.  “redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de rede modifica substantivamente a operação e o resultado dos processos de produção, experiência, poder e cultura”[12].
           O conceito de ‘Redes’ é polissêmico, tem sido abordado por pensadores/as das mais diversas áreas de conhecimento de formas diversificadas, segundo seus interesses.  Para nós neste momento importa pensar a rede como espaço e possibilidade de ação conjunta: redes de Solidariedade, redes de colaboração, estratégia organizativa que articula intencionalmente pessoas e grupos humanos, que ajuda os atores e agentes pastorais e/ou  sociais a potencializarem suas iniciativas para promover o desenvolvimento pessoal e social dos sujeitos envolvidos, incidindo na superação das situações de injustiças e vulnerabilidades que os atingem.  Rede enquanto ação, articulação e organização social e politica como  espaço e metodologia  missionaria. 
 “A simbologia da “rede” é significativa para a compreensão do conceito: a rede não é apenas a soma de cordas. É uma maneira de entrelaçar as cordas de tal modo que, juntas, conseguem adquirir potencialidades que ultrapassam as capacidades individuais de cada uma delas. Em outras palavras, o trabalho em rede, além de ser uma forma privilegiada para somar forças, é também uma maneira de trabalhar de forma articulada que permite desdobrar as habilidades dos sujeitos envolvidos, garantindo uma maior eficácia no trabalho e maior eficiência nos resultados”[13].
                     A ação em rede introduz novos valores, habilidades e processos, necessários para todos os grupos que pretendem atuar no enfrentamento a causas sociais  complexas de forma ampla e qualificada. Envolvem processos de circulação de informações e conhecimentos, articulação, participação e cooperação.  
                 A rede constitui uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações,  na  busca de novas articulações entre os atores sociais, para a construção coletiva de soluções ante  demandas comuns. São estruturas horizontais e  participativas que através de parcerias e alianças vem demonstrando sempre mais efetivas no enfrentamento das  diferentes situações de exclusão e violações de direitos das pessoas em situações de vulnerabilidades. Como exemplos, temos  as redes de economia solidaria,  redes de defesa dos direitos humanos, rede de serviço aos migrantes, as redes de enfrentamento a violência contra mulheres e à exploração sexual de crianças e adolescentes,  as redes de  enfrentamento ao trafico de pessoas, dentre elas, a Rede um Grito pela vida,  e muitas  outras.
                   A articulação em parcerias e redes, através dos diversos fóruns, comitês, conselhos tutelares e  de direitos, conferências e secretárias especificas que afloraram fortemente nos últimos anos, mesclando ações da sociedade civil organizada, órgãos de governo e empresas privadas, não obstantes as dificuldades, contradições e conflitos inerentes aos processos coletivos plurais, constituem uma proposta alternativa e  democrática de realização do trabalho coletivo e de circulação do fluxo de informações, elementos essenciais para o processo cotidiano de transformação social.
                São canais de participação importantes, conquistados pelos dos movimentos   populares e demais seguimentos da sociedade civil, que incidem na definição e monitoramento das políticas publicas. Urge sem dúvida qualificá-los e torna-los mais efetivos com uma participação militante qualificada, proativa  e eticamente responsável.

 3.2. Missão em Rede - fios que se unem em profecia articulada

“Não é possível crer que tudo é fácil.
Há muita força que produz a morte...

É necessário unir o cordão...

É ele quem nos convida pra trabalhar,
o amor repartir e as forças juntar.” (Zé Vicente)


              
                Neste universo da sociedade em rede, a Igreja e a Vida Religiosa Consagrada, a fim de responderem em fidelidade criativa os apelos de Deus oriundos dos cenários das periferias e fronteiras “onde a vida clama” e pede profecia, são convocadas a entrelaçar os fios de seus carismas, tempo e recursos humanos, culturais e materiais, para  ampliar os espaços de participação e articulação na missão que realizam, intensificando sua presença, participação e organização  em redes.

“... Não poderia este Ano ser ocasião de sair, com maior coragem, das fronteiras do próprio Instituto para se elaborar em conjunto, a nível local e global, projectos comuns de formação, de evangelização, de intervenções sociais? Poder-se-á assim oferecer, de forma mais eficaz, um real testemunho profético. A comunhão e o encontro entre diferentes carismas e vocações é um caminho de esperança. Ninguém constrói o futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao diálogo, à escuta, à ajuda mútua...”[14]

             Os múltiplos corpos e faces das novas pobrezas: “os migrantes, as vítimas de violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou trabalho infantil, mulheres maltradas, vítimas da exclusão e do tráfico para exploração sexual, pessoas desempregados/as excluídos/as pelo analfabetismo tecnológico, pessoas que vivem na rua das grandes cidades...”[15] gritam por inciativas que geram transformações concretas em suas vidas.
             Nos corpos desfigurados e nos eloquentes gritos por dignidade e justiça destas categorias de pessoas,  está o corpo e o grito do Cristo, o Crucificado/Ressuscitado a quem seguimos e nos comprometemos.  Desta nossa fé e compromisso de Consagrada/os brota a urgência de uma solidariedade orgânica e sócio transformadora, como atitude permanente de encontro, fraternidade e serviço, expressa em opções coletivas na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos.
                     Missão exigente e desafiadora, ante a complexidade dos contextos e a amplitude dos clamores que nos interpelam. O resposta a estas situações, jamais serão eficazes de  forma compartimentada e isolada.  Só de forma compartilhada e articulada será possível fazermos frente a estes dramas humanos, socioculturais e ecológicos hodiernos. Urge, portanto criar e/ou intensificar uma cultura de articulação e cooperação em rede como caminho e horizonte da missão profética da VRC.
                   O trabalho em redes intercongregacionais e/ou interinstitucionais, as parcerias e alianças com causas missionárias comuns, é sem  dúvida um sopro do Espírito e uma possibilidade místico-profética  de encarnação e atualização dos Carismas de nossas congregações nas dobras da história, nos novos espaços sociais, políticos e teológicos emergentes, onde nossas limitações quer pessoais ou institucionais não nos permitem chegar sozinhas/os. 
                  Além da urgência histórica, que nos é imperativo para trabalhar juntas/os. No horizonte místico-profético há fundamentos teológicos que animam e sustentam a organização e missão em  rede na VRC:
 a) A missão em rede enquanto sinal da Comunhão Trinitária. Na alteridade do Pai, do filho e do Espírito Santo, Deus se faz  Uno na Missão de ser e criar comunhão. “... que eles/as sejam um, assim como nós somos um” (cf JO17,11)
b) A fidelidade ao Deus da Aliança e a aliança de Deus com o povo”.(Jr, 31,33), razão de ser da VRC que, ao entregar-se como pertença ao Senhor, torna-se corresponsável pela história de Salvação e Libertação  povo, encontrando e compartilhando meios e caminhos em cada momento histórico.
c) O projeto missionário de Jesus (Lc 4,16-20) é a missão dos/as seus discípulos/as missionarias por tanto é a missão de toda VRC que a Ele se consagra e é por  Ele, enviada para proclamar o fim de toda escravidão;
 c) na diversidade dos carismas, (ICor, 12,4) único é o Espírito que nos move e mobiliza para o horizonte da profecia  do Reino de Deus e para solidariedade com os empobrecidos e empobrecidas.
d) A memoria e atualização do Mistério Pascal de Cristo, celebrado na Eucaristia, nos aproximam uns dos outros, umas das outras e nos integra como participantes vivos do corpo de Cristo (Ef 2,13), comungando de sua missão de lutar para que todos os povos tenham vida, somos impelidas/os a repensar e recriar nossa vida e missão interligando  nossos projetos e corpos institucionais em redes de comunhão solidaria.
e) As opções evangelizadora  da Igreja, que compreendendo “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”.(DA 392). Convoca-nos a assumir as realidades de fronteira, engajando-nos nos espaços mais diversos para defender e promover a vida ameaçada. 
f) A prioritária razão de ser  da VRC - Profecia do Reino de Deus . As pessoas consagradas são sinais de Deus nos diversos ambientes de vida, são fermento para o crescimento de uma sociedade mais justa e fraterna, são profecia de condivisão com os pequenos e os pobres”[16]. (Papa Francisco)
              A partir destes parâmetros e fundamentos, podemos afirmar que unidas/os pelo compromisso comum com o Evangelho da Vida, na missão de ser sinal da justiça e Profecia do Reino de Deus na história, respondendo com solicitude ao Espírito às interpelações do momento presente, somos convidadas/os a fazer da organização e missão em rede um laboratório de solidariedade, democracia e cidadania. Um caminho de fidelidade dinâmica e criativa à vocação profética, que somos desafiadas a reavivar e resignificar nesta encruzilhada histórica em que nos encontramos.

                                                   
4. Rede um grito pela Vida: um caminho de  possibilidades, desafios e esperanças... 

“Diante da Rede da Maldade e da Morte,
surge a Rede do bem - “Um Grito pela Vida”.
Começou pequena como semente de mostarda,
 mas está crescendo,
criando força e influência no Brasil e no mundo
 A rede da maldade que promove o tráfico
se organiza a partir do desejo de lucro e de prazer.
A rede  “Um Grito pela Vida”
se organiza entre as Congregações religiosas com leigos/as e outras
Organizações do bem,
 a partir da fé em Deus e do amor à vida”.   
 (cf. Carlos Mersters)

    
               A história de como surgiu a Rede um Grito pela Vida e como ela está organizada, já foi relatada em vários subsídios da VRC, de forma que aqui faço apenas um sucinto resumo desta trajetória, no intuito de enfatizar  a reflexão a cerca do significado profético de da missão, as possibilidades, desafios e esperanças que a mesma carrega e oferece ao conjunto da VRC.

Para recordar!

Em março de 2007, um grupo de 28 religiosas de 20 Congregações, vindas de diversas regiões do País, ao concluir o curso de formação sobre trafico de pessoas, organizado pela Conferencia dos Religiosos do Brasil- CRB, por solicitação da UISG, União Internacional das Superioras Gerais, que em sua Plenária Internacional, no ano 2000, havia assumido o compromisso mobilizar as Conferências e Congregações a atuarem no enfrentamento ao trafico de pessoas, em particular contra o tráfico de mulheres. Indignadas e sensibilizadas com a crueldade, amplitude e gravidade da realidade do tráfico de pessoas no mundo e em nosso País, estas religiosas, sentiram neste drama de milhares de pessoas um desafio-clamor, que agride a vida e viola a dignidade de milhões de pessoas, sobretudo as mulheres e crianças.  Um apelo de Deus que precisava ser acolhido e enfrentado de forma conjunta. E para esta finalidade criaram a Rede um Grito pela Vida com a missão assim definida na época: “Atuar na erradicação do TSH socializando informações; partilhando e fortalecendo ações de prevenção; articulando e integrando ações de apoio as vitimas, motivadas pela mística da Vida Consagrada: o seguimento de Jesus Cristo na defesa da Vida”[17]

Eu creio na semente lançada na terra na vida da gente

           Assim nasceu  a  Rede um grito pela Vida, como uma pequena semente de missão em rede no enfrentamento ao tráfico de pessoas, plantada no chão de nossos espaços de missão, de nossas Congregações e da Conferencia dos Religiosos/as do Brasil. Semente que, regada com ‘muita reza e muita luta’, cresceu e se espalhou pelo Brasil, como expressão   Evangélico-Politica de solidariedade e cidadania. Ganhou visibilidade e força mística e  profética de conscientização, articulação e mobilização em âmbito nacional e internacional.

“A história da Rede Um grito pela Vida se confunde com o inquieto impulso de algumas Religiosas que contagiaram algumas Congregações. E, desde o primeiro “grito”, ninguém mais segurou esta causa. A cada encontro, a cada reflexão, a cada seminário, a rede cresce... a voz se levanta mais... as iniciativas se concretizam... os fios se ligam. Profecia! ”[18]

             Hoje, a Rede Um Grito pela Vida, está presente em todas as regiões do País, com 26 núcleos em 22 Estados e no distrito federal e conta mais 300 religiosas/os, de aproximadamente 70 congregações, muitos leigos/as integrantes dos núcleos e um grande leque de apoiadores/as e parceiros/as  no enfrentamento aos Trafico de Pessoas.
             Com o slogan/lema Enfrentar o tráfico de pessoas é nosso compromisso! A Rede um Grito pela Vida assume a missão de atuar na Prevenção, Atenção ás Vítimas e  Incidência Politica através de atividades de:
- Sensibilização e informação, priorizando os grupos em situação de vulnerabilidade, lideranças comunitárias, agentes de pastoral e outros;
- Organização de grupos de reflexão e estudo, aprofundando as causas e situações que o favorecem o trafico de pessoas: questões de gênero, violência, modelo de desenvolvimento, grande construções e projetos, grandes eventos, hedonismo midiático, aumento da precariedade do trabalho, corrupção, impunidade, entre outras;
- Capacitação de multiplicadores/as, visando ampliar a ação de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, principalmente para fins de exploração sexual;
- Participação e mobilização social e politica de incidência na definição e efetivação de politicas públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
           Integrada com as organizações e organismos eclesiais, sociais e políticos, motivada e inspirada pela força do Espírito de Deus, fundamentada na Palavra de Deus que é fonte de Vida e Liberdade, a Rede Um grito pela Vida, num movimento contínuo de aprendizagem, determinação, ousadia e criatividade, tem  feito ecoar em mutirão o seu Grito pela Vida, pelo fim do tráfico de pessoas e das praticas similares de violação dos direitos humanos, desvelando e denunciando os mecanismos de dominação e escravidão que criam e sustenta esta rede do mal: a lógica mercantilista, excludente e violenta do capitalismo e do patriarcalismo; a massificação das consciências e a erotização e violência midiática  dos corpos e das relações humanas e afetivas pelas mídias dominantes; a cultura classista, sexista, racista e homofóbica que marginaliza e explora as pessoas das mais diversas formas; a ineficiência e inoperância das leis e processos de responsabilização dos agentes do crime; a cultura da indiferença e da naturalização das desigualdades e exploração de gênero, etnias e classes sociais; a precariedade das politicas publicas voltadas para as populações vulneráveis a corrupção e outras.
Indignação e ação libertadora - “No grito a dor e o pranto, no canto libertação”!  
           O Grito da Rede é um Grito Operativo, ou seja, além de ser um Grito de indignação  e denuncia que rompe o silencio social e dá visibilidade à realidade do trafico de pessoas, abordando incansavelmente, nos mais diferentes espaços esta realidade e os inúmeros malefícios desta abominável mazela  na vida das pessoas traficadas, a Rede grita pelas mãos, na arte de tecer redes de vida e libertação, fomentar e desenvolver processos de cidadania articulada.
             Sua logomarca são mãos abertas, de várias cores, dispostas de forma circular, prontas para agir coletivamente, se entrelaçar com outras mãos estendidas em compaixão samaritana e força profética no enfrentamento ao tráfico de pessoas.  
            Com as mãos entrelaçadas e unidas na Intercongregacionalidade - comunhão de carismas, e na Interinstitucionalidade com múltiplas organizações afins, os núcleos da rede nos estados e municípios, vão a cada dia fomentando, promovendo e/ou participando de atividades e processos de prevenção, orientação, encaminhamentos e acompanhamento a casos concretos, com um intensivo trabalho formativo, de intervenção social e incidência politica, buscando instruir e instrumentalizar a sociedade, e fortalecer a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, a fim de coibir o crescimento da inserção e/ou reinserção das pessoas neste mercado do crime.
            Embalada pela ciranda da solidariedade e da utopia “nós somos muitos, nós somos fortes, dignidade e liberdade é nossa sorte” (Zé Vicente).  Num movimento circular  e de  horizontalidade nas relações, no entrelaçar as mãos, dons, saberes e serviços, no  juntar as vozes de indignação e profecia e  no esforço de acertar os passos nas estratégias de enfrentamento ao trafico de pessoas, e superar as causas geradoras desta escravidão contemporânea.  A Rede Um Grito pela Vida, tem sido desafiada permanentemente a uma inserção proativa em novos espaços sociais e políticos de defesa de direitos, formulação, viabilização e monitoramento das politicas públicas: os fóruns, comitês, núcleos e postos de enfrentamento e nas múltiplas redes de proteção social organizadas.
              Missão que se impõe como um aprendizado e desafio permanente à capacitação,  abertura às diferenças e posicionamentos firmes, claros e  coerentes. Postura ético-politica, e por que não dizer místico-profética? -, que deve fazer a diferença, evidenciando nossa Consagração/Missão pelo testemunho, conteúdo e relações pautadas nos valores do dialogo, da justiça, equidade e defesa dos direitos dos pobres, especialmente das vítimas em potencial ao trafico humano: mulheres, crianças e adolescentes, juventudes, migrantes, indígenas, afrodescendentes e populações em situações de vulnerabilidades.
     
         Profecia, ternura e ousadia é missão de cada dia!

          Nesta trajetória de aprendizado e militância, fé e cidadania, oração e ação, ternura e ousadia, a missão da Rede Um Grito pela Vida e de forma mais ampla, a missão em rede  tem sido confirmada pela Vida Religiosa Consagrada como um caminho de fidelidade dinâmica  e criativa ao Deus da Aliança e de retomada da radicalidade no seguimento de Jesus de Nazaré, pela possibilidade de encarnação e visibilização dos carismas congregacionais nos espaços de fronteira, revitalizando e atualizando as origens fundacionais, oportunizando, a muitas religiosas/os e congregações o retorno aos pobres,  ampliando a compreensão a cerca dos espaços e formas e de ser presença solidária. Um sinal de vitalidade pessoal e missionária para muitos  e muitas.
        Sua força de atração e credibilidade tem despertado em muitos cristãos leigos/as o compromisso de uma fé comprometida com vida onde ela se encontra ameaçada. Bem como, contribuído com o conjunto da Igreja, na missão de ser advogada dos pobres, perita em dignidade. Uma Igreja discípula e missionaria, atenta aos dramas humanos, especialmente os mais vulneráveis. Uma igreja que não se limita aos espaços do templo, mas vai ao encontro, se compromete e soma força com as lutas dos empobrecidos/as, como dimensão intrínseca do seu compromisso com Jesus e o Reino por ele anunciado.
           
          Passo a passo o caminho se faz
           A cada passo nos deparamos com esperanças e desafios que nos impulsionam a seguir fazendo história. No atual estágio da caminhada da Rede um Grito pela Vida, podemos perceber que  os desafios e esperanças se misturam num mosaico de diferentes peças e cores, que evidenciam horizontes, provocações e sinalizações para o presente/futuro de nossa missão nesta tessitura  de profecia em rede  como Igreja  e Vida Religiosa Consagrada.
             A partir do consenso em torno da sacralidade da pessoa humana e da opção pelos pobres como Causa de Deus, abraçar e reafirmar cotidianamente a compromisso com  a defesa intransigente das pessoas agredidas em sua dignidade, através de uma aguçada sensibilidade, abertura e disposição para ouvir e acolher seus gritos, rompendo com a cultura da indiferença, compartilhando a missão com os leigos/as, atuando em redes e parcerias  é imperativo divino.  Esperança-desafio para a Vida Religiosa Consagrada  na missão de ser  no e para o mundo:  Evangelho, Profecia  e Esperança.
            Nesta perspectiva, penso que o poema “Renova-te” de Cecília Meirelles, pode nos provocar e animar a seguir firmes abrindo-nos sempre mais aos horizontes da missão em rede no enfrentamento ao tráfico de pessoas e/ou outras realidades de fronteiras.

Vida Religiosa Consagrada:

“Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado, 
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo”. (Cecilia Meireles)



[1] - Nasceu em Aparecida de Goiânia, GO. É Religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Piauí- UFPI, Mestra em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, Especialista em Gestão Social, pela UNISINOS, São Leopoldo, RS. Coordenadora da Rede “Um Grito pela Vida” e membro da Coordenação do GT de Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB. Reside em Manaus, AM. E-mail: ireurides@hotmail.com

[2] GASDA, E. Élio. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, existência ética, missão da igreja, em: Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo – II Seminário. Brasília, Edições CNBB 2012. P. 32
[3]  Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540674-vemos-a-realidade-melhor-da-periferia-do-que-do-centro-entrevista-com-o-papa-francisco.
[4] Cf cf. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011 – 2015. P. 17.18

[5] EG 52

[6] ANDRADE, Cesar William. No Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, tecer outra rede. Disponível em: http://redeumgritopelavida.blogspot.com.br/p/reflexoes.html
[7]  Idem GASDA, 2012
[8] Disponível em http://www.snpcultura.org/trafico_seres_humanos_e_vergonha.html

[9]  Cf. Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada.

[10]  Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999
[11] GUARÁ. Isa M. F R. (Coord.). Gestão municipal dos serviços de atenção à
criança e ao adolescente. 2. edição. São Paulo: IEE – PUC-SP/CBIA, 2000
[12] Idem CASTELLs, 1999  P. 497
[13] LUSSI, Carmem& MARINUCCI, Roberto. Notas sobre o trabalho em Rede. Disponível em: http://www.csem.org.br/pdfs/notas_sobre_trabalho_em_rede.pdf

[14] Idem. Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada.

[15]   CELAM. Documento de Aparecida – DA.  Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 5ed. Brasília: CNBB/Paulinas/Paulus, 2008, nº 402.

[16] Idem. Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada.

[17] Fragmento do termo de compromisso de criação da Rede
[18] AMBRÓSIO, Mariam. Um grito pela vida. Publicações CRB 2013


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