Por Irmã Eurides
Alves de Oliveira[1]
“Enfrentar o
tráfico de pessoas é assumir a ‘causa de Deus’. (...) É ser uma carta de Cristo
para o mundo (2cor 3,3), é ser movida/o pelo Espírito da liberdade, pois onde
está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade[2].
1. Introdução
Fazer
memória agradecida do passado, acolher e viver o presente com paixão e
realismo e abraçar o futuro com
esperança militante, em profecia coletiva, tecendo redes de vida e libertação
tem sido a motivação e o empenho de
muitas religiosas e religiosos nos últimos tempos e, em particular, neste ano
da vida Consagrada.
Animada pelo espírito pós conciliar
de “volta às fontes”, assumindo em fidelidade criativa o seguimento de
Jesus de Nazaré, a partir das periferias e fronteiras existenciais, sociais
e culturais, a VRC tem nas ultimas décadas descoberto na missão
em rede um meio privilegiado para viver sua missão profética, respondendo
aos apelos do Deus da vida,
presente nos gritos dos sujeitos
emergentes, nos cenários de velhas e novas pobrezas deste tempo hodierno.
A intenção deste texto não é de fazer
uma abordagem teórica sobre a profecia
da VRC e/ou do trabalho em rede, mas tecer algumas considerações sobre o tema e
compartilhar alguns pressupostos, aprendizados e convicções que a prática da missão
em rede no enfrentamento ao tráfico de pessoas tem nos oferecido, almejando
que as mesmas possam ser fios de vida e libertação, que deem novos significados
a nossa Consagração/Missão ampliando as
possibilidades, opções, no horizonte da
profecia que nos é legada.
Seguindo a metodologia do Ver, Julgar,
Agir, parto de algumas considerações sobre o tecido social de onde surgem os fios-clamores,
que nos interpelam e provocam a unir forças e atuar em redes de solidariedade e
profecia; a seguir faço uma breve
fundamentação sobre redes e sua força de profecia coletiva para a VRC; e por
fim compartilho algo sobre a missão da
Rede Um Grito pela Vida, no intuito de continuar sensibilizando-nos para
esta causa e, quem sabe, servir de luz para o surgimento de outras redes da VRC
em respostas aos desafios missionários de nosso tempo.
2.
O tecido social da sociedade
contemporânea
“A realidade é vista melhor a partir da
periferia do que do centro (...) Quando eu falo de periferia, falo de limites
(...) Uma coisa é ver a realidade a partir do centro e outra coisa é vê-la do
último lugar ao qual chegamos”[3].
As alegrias e esperanças, as angustias,
sofrimentos e clamores que marcam o nosso tempo e afetam a vida do planeta e da
humanidade, sobretudo das populações empobrecidas, são para nós interpelações
de Deus. (cf GS.1)
São múltiplas e complexas as
situações e mediações que compõem o tecido social, a teia da vida na sociedade
contemporânea. Analisá-las critica e evangelicamente não é uma tarefa simples. Requer
uma hermenêutica dos sujeitos, dos fatos e
do tempo. Uma mística de olhos
abertos, coração sensível e mente criativa para agir e interagir na dinâmica e
horizonte do Reino de Deus.
Para evangelizar, o discípulo, a
discípula missionária precisa conhecer a realidade, perscrutando-a com olhos de
fé, em atitude de discernimento. Dada a
complexidade da realidade, seu conhecimento implica uma evangélica visão
crítica, condição para uma ação eclesial assentada em fundamentos sólidos”[4]
A tessitura das relações
sociais envolvem o processo de produção e reprodução social da vida nas suas
expressões humanas, materiais e simbólicas. Essas relações configuram a
sociabilidade humana como uma trama que envolve o social, o politico, o
econômico, o cultural, o ecológico, o religioso, questões de gênero, etnia e
gerações.
Este multifacetário tecido
social, caracterizado como um “caleidoscópio”,
ou seja, contextos de contínuas, múltiplas e rápidas mudanças. Uma virada
histórica, caracterizada por velozes, significativas e por vezes violentas
implicações e consequências na vida das pessoas, sobretudo dos pobres e
excluídos/as, conforme nos recorda o Papa Francisco na Evangelli Gaudium
“A humanidade vive, neste momento, uma
virada histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em
vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das
pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia,
não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo
vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam
algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras
pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se
desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social
torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes
viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes
saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no
progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações
em diversos âmbitos da natureza e da vida”[5].
Olhares atentos para este
mundo em mudanças, adentrando nesta trama societária, que batizamos de pós-moderna deparamo-nos com macros e
micros cenários sociais, econômicos, políticos e culturais, permeados de fios de
dor e sofrimento por toda parte: a economia da exclusão e da desigualdade
social que mata, a microfísica das violências
nos lares, nas escolas, ruas e praças; o grito e o gemido da terra
ferida e devastada, que provocam e
interpelam nossas sensibilidades e
opções missionarias para além da estritamente eclesial.
Apesar do progresso
técnico-cientifico, e o tão propagado crescimento econômico, persistem e
aprofundam-se assimetricamente, desigualdades e desequilíbrios humanos, sociais
e ecológicos, geradores de uma generalizada crise civilizacional, com marcas de
dor e destruição em todas as esferas da vida humana e do planeta. Cresce a cada
dia a concentração do ter e do poder nas mãos de uns poucos e os altos índices
de pobreza e miséria continuam a interpelar nossas consciências. Os pobres são
considerados supérfluos e descartáveis. A natureza, as pessoas, as relações humanas,
familiares sociais são transformadas em mercadorias, vendidas, compradas e
exploradas pelas redes comerciais, midiáticas e dos traficantes de drogas,
armas e pessoas.
Urge, portanto intensificar as redes
de solidariedade, colaboração e profecia,
capazes de responder com criatividade evangélica os sinais dos tempos,
contrapondo-se a estas redes mortíferas que, regida pela lógica e ânsia do lucro e do poder,
usando meios espúrios de enriquecimento ilícito, criam e sustentam os regimes de exclusão,
guerras e escravidão, dentre os quais o
tráfico de pessoas.
O trafico
de pessoas que denominemos como a “escravidão moderna” é uma das faces mais
obscuras da globalização capitalista. Sequestra a dignidade de mais de 30 milhões
de pessoas em todo o planeta. Seja para fins de exploração sexual e/ou laboral,
para adoção irregular, remoção e venda de órgãos, mendicância, servidão doméstica,
casamento servil, atividades ilícitas ou outras. O tráfico humano é uma das
mais graves violações da vida e dos direitos humanos de nossa época. Um crime em rede. Uma rede criminosa tecida
com os fios da vulnerabilidade, da pobreza, das desigualdades de classe, etnia,
gênero e gerações, da dor e do sofrimento, dos sonhos e esperanças de pessoas concretas. São
‘Simones, Marias, Valerias, Joãos, Raimundos... Crianças, jovens ou adultos, mulheres e homens de perto e
de longe, que tem os fios de sua
existência violados e envolvidos na tessitura
desta triste trama planejada pelos traficantes da liberdade.
“O tráfico de
pessoas é semelhante a uma teia/rede, composta por uma infinidade de fios que
se cruzam e se entrelaçam. Em cada um deles está uma pessoa, que tem uma
história, um lugar de onde partiu e que agora vive marcada por uma trama muito
maior do que tudo o que tenha sonhado ou desejado.
No tênue fio de um menino nascido no interior do
Norte do Brasil há uma infância marcada por tantas dificuldades que é difícil
dizer por qual razão o sonho de mudar a realidade foi crescendo, até se tornar
um desejo de sair daquele lugar, de arriscar tudo por algo melhor. Uma de suas
poucas alegrias era o futebol, onde o giro da bola, o drible e a magia do gol,
faziam sorrir e pensar que viver valia a pena.
Noutro fio, tão tênue quanto o primeiro está uma
jovem mulher, bonita e pobre ou, como algumas vezes gostam de dizer, “com
poucos recursos”. À sua volta a realidade é de privação, senão da comida ou do
conforto, mas ainda assim, ausência de um futuro em que ela se veja feliz. Ela
teima em querer e buscar o que deveria ter por direito ou por muito desejar.
O fio de um homem adulto que vê a seu redor uma
situação que lhe causa dor e sofrimento. Forte para trabalhar, mas sem emprego
ou sem a possibilidade de viver dignamente com aquilo que lhe oferecem. O pouco
estudo não o intimida e está disposto a arriscar o que for necessário para
melhorar de vida.
Outro fio, tecido num corpo que foi sendo
modificado e agora já é difícil afirmar se é ele ou ela, também habitam sonhos
e desejos de uma vida melhor, ainda que isso signifique uma quantidade a mais
de sacrifício pessoal e distanciamento de sua terra”[6] (Andrade, 2012)
Estes fios
clamores que se entrelaçam nos
contextos, corpos e subjetividades das pessoas exploradas e traficadas por esta
nefasta rede do mal, desvela os rasgos do tecido humano e social da
sociedade contemporânea. Rasgos de
desumanização, injustiças e idolatria sistêmica. “A civilização do século XXI é profundamente idolátrica seja na economia,
na cultura e na politica”[7].
O Enfrentamento destas
realidades se impõem para o Estado, e a Sociedade como um urgente
imperativo ético-politico. E para a
Igreja e a Vida Religiosa Consagrada, como um Clamor, um
Grito que clama aos céus, uma convocação à Profecia Rede.
“Devemos
unir as forças para libertar as vítimas e para encerrar este crime sempre mais
agressivo, que ameaça, além das pessoas singulares, os valores fundamentais da
sociedade, e também a segurança e a justiça internacional, além da economia, do
tecido familiar e o próprio viver social” (...) Todos nós somos chamados por
Deus para sermos livres, todos somos chamados para sermos filhos e filhas, e
cada um, cada uma de acordo com as suas responsabilidades, é chamado para
combater as formas modernas de escravidão. Todas as pessoas, culturas e
religiões, vamos juntar forças"[8].
( cf. Papa
Francisco)
3.
Trabalho em Redes como Caminho e Horizonte
de Profecia para a VRC
Deus chama a
gente pra um momento novo /de caminhar junto com o Seu povo.
É hora de transformar o que não dá mais / Sozinho, isolado,
ninguém é capaz.
(Zé Vicente)
Deus chama a gente para um momento novo. Este canto do nosso poeta Zé Vicente, que cantamos e
dançamos tantas vezes em nossos encontros e celebrações, nos convoca para
ruptura de toda forma de individualismo, fragmentação, e/ou autoreferencialidade
na missão. Apresenta a missão em rede
como caminho capaz de transformar o que
não dá mais, ou seja, adverte-nos
que diante da complexidade e urgências
da realidade, dos inúmeros clamores e dramas da criação e da humanidade,
esgotou-se o tempo das praticas privativas e isoladas da minha congregação, do
meu grupo, da minha igreja, da minha organização... Só juntos e juntas entre
nós e com outros e outras somos capazes de sermos eficazes,
significativas/os e fieis na missão
profética de despertar o mundo para
Deus e para a justiça do Reino.
“despertem o mundo!
Sejam testemunhas de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver!
É possível viver neste mundo de forma diferente (...) A radicalidade evangélica
não é apenas para os religiosos: ela é exigida de todos. Porém, os religiosos
seguem ao Senhor de forma especial, seguem-no profeticamente. É este testemunho
que espero de vocês. Os religiosos e as religiosas deveriam ser pessoas capazes
de despertar o mundo”[9].
(Papa Francisco)
Nesta perspectiva é importante compreendermos
que atuar em redes e parcerias é hoje, um imperativo para todo e qualquer
grupo social que pretenda interagir e intervir na realidade, pois a sociedade
contemporânea é hoje uma sociedade em
rede[10]
e nós necessariamente precisamos
pensar, estar e agir em rede.
3.1. Algumas considerações sobre trabalho
e organização em REDES
“Construir redes significa apostar em
relações humanas articuladas entre
pessoas e grupos que, no debate
das diferenças, possam ajustar intenções mais
O tema, a organização e o trabalho em redes
e parcerias, tem sido nas últimas décadas uma realidade e um desafio constante para
estudiosos e atores sociais das múltiplas e diversificadas instituições comunitárias, sociais, econômicas, politicas e religiosas. Trata-se
de um novo paradigma que tem revolucionado a visão andro e antropocêntrica, autossuficiente,
individualista e compartimentada do mundo em que vivemos. “redes
constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica
de rede modifica substantivamente a operação e o resultado dos processos de
produção, experiência, poder e cultura”[12].
O conceito de ‘Redes’ é polissêmico, tem sido
abordado por pensadores/as das mais diversas áreas de conhecimento de formas
diversificadas, segundo seus interesses.
Para nós neste momento importa pensar a rede como espaço e possibilidade
de ação conjunta: redes de Solidariedade, redes de colaboração, estratégia
organizativa que articula intencionalmente pessoas e grupos humanos, que ajuda
os atores e agentes pastorais e/ou sociais
a potencializarem suas iniciativas para promover o desenvolvimento pessoal e
social dos sujeitos envolvidos, incidindo na superação das situações de
injustiças e vulnerabilidades que os atingem. Rede enquanto ação, articulação e organização
social e politica como espaço e
metodologia missionaria.
“A simbologia da “rede” é significativa para a
compreensão do conceito: a rede não é apenas a soma de cordas. É uma maneira de
entrelaçar as cordas de tal modo que, juntas, conseguem adquirir
potencialidades que ultrapassam as capacidades individuais de cada uma delas.
Em outras palavras, o trabalho em rede, além de ser uma forma privilegiada para
somar forças, é também uma maneira de trabalhar de forma articulada que permite
desdobrar as habilidades dos sujeitos envolvidos, garantindo uma maior eficácia
no trabalho e maior eficiência nos resultados”[13].
A ação em rede introduz novos valores,
habilidades e processos, necessários para todos os grupos que pretendem atuar
no enfrentamento a causas sociais complexas
de forma ampla e qualificada. Envolvem processos de circulação de informações e
conhecimentos, articulação, participação e cooperação.
A rede
constitui uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos
e organizações, na busca de novas articulações
entre os atores sociais, para a construção coletiva de soluções ante demandas comuns. São estruturas horizontais e participativas que através de parcerias e
alianças vem demonstrando sempre mais efetivas no enfrentamento das diferentes situações de exclusão e violações
de direitos das pessoas em situações de vulnerabilidades. Como exemplos, temos as redes de economia solidaria, redes de defesa dos direitos humanos, rede de
serviço aos migrantes, as redes de enfrentamento a violência contra mulheres e
à exploração sexual de crianças e adolescentes, as redes de
enfrentamento ao trafico de pessoas, dentre elas, a Rede um Grito pela
vida, e muitas outras.
A articulação em
parcerias e redes, através dos diversos fóruns, comitês, conselhos tutelares
e de direitos, conferências e
secretárias especificas que afloraram fortemente nos últimos anos, mesclando
ações da sociedade civil organizada, órgãos de governo e empresas privadas, não obstantes as dificuldades, contradições e conflitos inerentes aos
processos coletivos plurais, constituem uma proposta alternativa e democrática de realização do trabalho coletivo
e de circulação do fluxo de informações, elementos essenciais para o processo
cotidiano de transformação social.
São canais de participação importantes, conquistados
pelos dos movimentos populares e demais seguimentos da sociedade
civil, que incidem na definição e monitoramento das políticas publicas. Urge
sem dúvida qualificá-los e torna-los mais efetivos com uma participação
militante qualificada, proativa e
eticamente responsável.
3.2.
Missão em Rede - fios que se unem em profecia articulada
“Não é possível crer que tudo é fácil.
Há muita força que produz a morte...
É necessário unir o cordão...
É ele quem nos convida pra trabalhar,
o amor repartir e as forças juntar.” (Zé Vicente)
Neste universo da sociedade em rede, a Igreja e a Vida Religiosa Consagrada,
a fim de responderem em fidelidade criativa os apelos de Deus oriundos dos cenários
das periferias e fronteiras “onde a vida
clama” e pede profecia, são convocadas a entrelaçar os fios de seus
carismas, tempo e recursos humanos, culturais e materiais, para ampliar os espaços de participação e articulação
na missão que realizam, intensificando sua presença, participação e organização
em redes.
“... Não poderia este Ano ser ocasião
de sair, com maior coragem, das fronteiras do próprio Instituto para se
elaborar em conjunto, a nível local e global, projectos comuns de formação, de
evangelização, de intervenções sociais? Poder-se-á assim oferecer, de forma
mais eficaz, um real testemunho profético. A comunhão e o encontro entre
diferentes carismas e vocações é um caminho de esperança. Ninguém constrói o
futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas
reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao
diálogo, à escuta, à ajuda mútua...”[14]
Os múltiplos corpos e faces das novas pobrezas: “os
migrantes, as vítimas de violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do
tráfico de pessoas e sequestros, os desparecidos, os enfermos de HIV e de
enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, idosos, meninos e meninas que são
vítimas da prostituição, pornografia e violência ou trabalho infantil, mulheres
maltradas, vítimas da exclusão e do tráfico para exploração sexual, pessoas
desempregados/as excluídos/as pelo analfabetismo tecnológico, pessoas que vivem
na rua das grandes cidades...”[15] gritam por inciativas que geram transformações
concretas em suas vidas.
Nos corpos desfigurados e nos eloquentes gritos por dignidade e justiça destas
categorias de pessoas, está o corpo e o grito
do Cristo, o
Crucificado/Ressuscitado a quem seguimos e nos comprometemos. Desta nossa fé e compromisso de Consagrada/os
brota a urgência de uma solidariedade
orgânica e sócio transformadora,
como atitude permanente de encontro, fraternidade e serviço, expressa em opções
coletivas na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos.
Missão exigente e desafiadora, ante a
complexidade dos contextos e a amplitude dos clamores que nos interpelam. O resposta a estas situações,
jamais serão eficazes de forma
compartimentada e isolada. Só de forma
compartilhada e articulada será possível fazermos frente a estes dramas
humanos, socioculturais e ecológicos hodiernos. Urge, portanto criar e/ou
intensificar uma cultura de articulação e
cooperação em rede como caminho e horizonte da missão profética da VRC.
O trabalho em redes
intercongregacionais e/ou interinstitucionais, as parcerias e alianças com
causas missionárias comuns, é sem dúvida
um sopro do Espírito e uma possibilidade místico-profética
de encarnação e atualização dos Carismas
de nossas congregações nas dobras da história, nos novos
espaços sociais, políticos e teológicos emergentes, onde nossas limitações quer pessoais ou institucionais não nos permitem
chegar sozinhas/os.
Além
da urgência histórica, que nos é imperativo para trabalhar juntas/os. No
horizonte místico-profético há fundamentos teológicos que animam e sustentam a organização e missão em rede na VRC:
a) A missão em rede
enquanto sinal da Comunhão Trinitária. Na alteridade do Pai, do filho e do
Espírito Santo, Deus se faz Uno na Missão
de ser e criar comunhão. “... que eles/as
sejam um, assim como nós somos um” (cf JO17,11)
b) A fidelidade ao Deus da Aliança e a aliança de Deus com o povo”.(Jr, 31,33), razão de ser da VRC
que, ao entregar-se como pertença ao Senhor, torna-se corresponsável pela
história de Salvação e Libertação povo,
encontrando e compartilhando meios e caminhos em cada momento histórico.
c) O projeto missionário de Jesus (Lc 4,16-20) é a missão dos/as
seus discípulos/as missionarias por tanto é a missão de toda VRC que a Ele se
consagra e é por Ele, enviada para
proclamar o fim de toda escravidão;
c) na diversidade dos
carismas, (ICor, 12,4) único é o Espírito
que nos move e mobiliza para o horizonte da profecia do Reino de Deus e para solidariedade com os
empobrecidos e empobrecidas.
d) A memoria e atualização do Mistério Pascal de Cristo, celebrado
na Eucaristia, nos aproximam uns dos outros, umas das outras e nos integra como
participantes vivos do corpo de Cristo (Ef 2,13), comungando de sua missão de
lutar para que todos os povos tenham vida, somos impelidas/os a repensar e
recriar nossa vida e missão interligando
nossos projetos e corpos institucionais em redes de comunhão solidaria.
e) As opções evangelizadora da Igreja, que compreendendo “a opção
preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se
fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”.(DA 392). Convoca-nos a assumir
as realidades de fronteira, engajando-nos nos espaços mais diversos para
defender e promover a vida ameaçada.
f) A prioritária razão de ser da VRC - Profecia do Reino de Deus . “As pessoas consagradas são sinais de Deus nos diversos
ambientes de vida, são fermento para o crescimento de uma sociedade mais justa
e fraterna, são profecia de condivisão com os pequenos e os pobres”[16].
(Papa Francisco)
A partir destes parâmetros e fundamentos, podemos
afirmar que unidas/os pelo compromisso comum com o Evangelho da Vida, na missão
de ser sinal da justiça e Profecia do Reino de Deus na história, respondendo
com solicitude ao Espírito às interpelações do momento presente, somos
convidadas/os a fazer da organização e
missão em rede um laboratório de solidariedade, democracia e cidadania. Um caminho de fidelidade dinâmica e criativa à vocação profética, que
somos desafiadas a reavivar e resignificar nesta encruzilhada histórica em que
nos encontramos.
4. Rede um grito pela Vida: um caminho
de possibilidades, desafios e
esperanças...
“Diante da Rede da Maldade e da Morte,
surge a Rede do bem - “Um Grito pela Vida”.
Começou pequena como semente de mostarda,
mas está crescendo,
criando força e influência no Brasil e no mundo
A rede da maldade que
promove o tráfico
se organiza a partir do desejo de lucro e de prazer.
A rede “Um Grito pela
Vida”
se organiza entre as Congregações religiosas com leigos/as e
outras
Organizações do bem,
a partir da fé em
Deus e do amor à vida”.
(cf. Carlos Mersters)
A história de como surgiu a Rede um Grito pela
Vida e como ela está organizada, já foi relatada em vários subsídios da VRC, de
forma que aqui faço apenas um sucinto resumo desta trajetória, no intuito de
enfatizar a reflexão a cerca do
significado profético de da missão, as possibilidades, desafios e esperanças
que a mesma carrega e oferece ao conjunto da VRC.
Para recordar!
Em março de
2007, um grupo de 28 religiosas de 20 Congregações, vindas de diversas regiões
do País, ao concluir o curso de formação sobre trafico de pessoas, organizado
pela Conferencia dos Religiosos do Brasil- CRB, por solicitação da UISG, União
Internacional das Superioras Gerais, que em sua
Plenária Internacional, no ano 2000, havia assumido o
compromisso mobilizar as Conferências e Congregações a atuarem no enfrentamento
ao trafico de pessoas, em particular contra o tráfico de mulheres. Indignadas e
sensibilizadas com a crueldade, amplitude e gravidade da realidade do tráfico
de pessoas no mundo e em nosso País, estas religiosas, sentiram neste drama de
milhares de pessoas um desafio-clamor, que agride a
vida e viola a dignidade de milhões de pessoas, sobretudo as mulheres e
crianças. Um apelo de Deus que precisava
ser acolhido e enfrentado de forma conjunta. E para esta finalidade criaram a Rede
um Grito pela Vida com a missão assim definida na época: “Atuar na erradicação do TSH socializando
informações; partilhando e fortalecendo ações de prevenção; articulando e
integrando ações de apoio as vitimas, motivadas pela mística da Vida
Consagrada: o seguimento de Jesus Cristo na defesa da Vida”[17]
Eu creio na semente lançada na terra na vida da gente
Assim nasceu a Rede
um grito pela Vida, como uma pequena semente
de missão em rede no enfrentamento ao
tráfico de pessoas, plantada no chão de nossos espaços de missão, de nossas
Congregações e da Conferencia dos Religiosos/as do Brasil. Semente que, regada com
‘muita reza e muita luta’, cresceu e se espalhou pelo Brasil, como expressão Evangélico-Politica
de solidariedade e cidadania. Ganhou visibilidade e força mística e profética de conscientização, articulação e
mobilização em âmbito nacional e internacional.
“A história da Rede Um grito pela Vida se confunde
com o inquieto impulso de algumas Religiosas que contagiaram algumas
Congregações. E, desde o primeiro “grito”, ninguém mais segurou esta causa. A
cada encontro, a cada reflexão, a cada seminário, a rede cresce... a voz se
levanta mais... as iniciativas se concretizam... os fios se ligam. Profecia! ”[18]
Hoje, a Rede Um Grito pela Vida,
está presente em todas as regiões do País, com 26 núcleos em 22 Estados e no
distrito federal e conta mais 300 religiosas/os, de aproximadamente 70 congregações, muitos leigos/as
integrantes dos núcleos e um grande leque de apoiadores/as e parceiros/as no enfrentamento aos Trafico de Pessoas.
Com o slogan/lema Enfrentar o
tráfico de pessoas é nosso compromisso! A Rede um Grito pela Vida assume a
missão de atuar na Prevenção, Atenção ás
Vítimas e Incidência Politica através
de atividades de:
- Sensibilização e
informação, priorizando os grupos em situação de vulnerabilidade, lideranças comunitárias,
agentes de pastoral e outros;
- Organização de grupos
de reflexão e estudo, aprofundando as causas e situações que o favorecem o
trafico de pessoas: questões de gênero, violência, modelo de desenvolvimento,
grande construções e projetos, grandes eventos, hedonismo midiático, aumento da
precariedade do trabalho, corrupção, impunidade, entre outras;
- Capacitação de
multiplicadores/as, visando ampliar a ação de enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, principalmente para fins de exploração sexual;
- Participação e
mobilização social e politica de incidência na definição e efetivação de
politicas públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Integrada
com as organizações e organismos eclesiais, sociais e políticos, motivada e
inspirada pela força do Espírito de Deus, fundamentada na Palavra de Deus que é
fonte de Vida e Liberdade, a Rede Um grito pela Vida, num movimento contínuo de
aprendizagem, determinação, ousadia e criatividade, tem feito ecoar em mutirão o seu Grito pela Vida, pelo fim do tráfico de
pessoas e das praticas similares de violação dos direitos humanos, desvelando e
denunciando os mecanismos de dominação e escravidão que criam e sustenta esta
rede do mal: a lógica mercantilista, excludente e violenta do capitalismo e do
patriarcalismo; a massificação das consciências e a erotização e violência
midiática dos corpos e das relações humanas
e afetivas pelas mídias dominantes; a cultura classista, sexista, racista e
homofóbica que marginaliza e explora as pessoas das mais diversas formas; a
ineficiência e inoperância das leis e processos de responsabilização dos
agentes do crime; a cultura da indiferença e da naturalização das desigualdades
e exploração de gênero, etnias e classes sociais; a precariedade das politicas
publicas voltadas para as populações vulneráveis a corrupção e outras.
Indignação
e ação libertadora - “No grito a dor e o pranto, no canto libertação”!
O Grito da Rede é um Grito Operativo,
ou seja, além de ser um Grito de indignação
e denuncia que rompe o silencio social e dá visibilidade à realidade do
trafico de pessoas, abordando incansavelmente, nos mais diferentes espaços esta
realidade e os inúmeros malefícios desta abominável mazela na vida das pessoas traficadas, a Rede grita pelas mãos, na arte de tecer redes de vida e libertação, fomentar e desenvolver
processos de cidadania articulada.
Sua
logomarca são mãos abertas, de várias cores, dispostas de forma circular,
prontas para agir coletivamente, se entrelaçar com outras mãos estendidas em
compaixão samaritana e força profética no enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Com as mãos entrelaçadas e unidas na
Intercongregacionalidade - comunhão de carismas, e na Interinstitucionalidade
com múltiplas organizações afins, os núcleos da rede nos estados e municípios, vão
a cada dia fomentando, promovendo e/ou participando de atividades e processos
de prevenção, orientação, encaminhamentos e acompanhamento a casos concretos,
com um intensivo trabalho formativo, de intervenção social e incidência politica,
buscando instruir e instrumentalizar a sociedade, e fortalecer a rede de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, a fim de coibir o crescimento da inserção
e/ou reinserção das pessoas neste mercado do crime.
Embalada pela ciranda da solidariedade e da
utopia “nós somos muitos, nós somos
fortes, dignidade e liberdade é nossa sorte” (Zé Vicente). Num movimento circular e de horizontalidade nas relações, no entrelaçar as
mãos, dons, saberes e serviços, no juntar
as vozes de indignação e profecia e no
esforço de acertar os passos nas estratégias de enfrentamento ao trafico de
pessoas, e superar as causas geradoras desta escravidão contemporânea. A Rede Um Grito pela Vida, tem sido desafiada
permanentemente a uma inserção proativa em novos espaços sociais e políticos de
defesa de direitos, formulação, viabilização e monitoramento das politicas
públicas: os fóruns, comitês, núcleos e postos de enfrentamento e nas múltiplas
redes de proteção social organizadas.
Missão que se impõe como um aprendizado
e desafio permanente à capacitação, abertura às diferenças e posicionamentos
firmes, claros e coerentes. Postura
ético-politica, e por que não dizer místico-profética?
-, que deve fazer a diferença, evidenciando nossa Consagração/Missão pelo
testemunho, conteúdo e relações pautadas nos valores do dialogo, da justiça,
equidade e defesa dos direitos dos pobres, especialmente das vítimas em
potencial ao trafico humano: mulheres, crianças e adolescentes, juventudes,
migrantes, indígenas, afrodescendentes e populações em situações de vulnerabilidades.
Profecia, ternura e ousadia é missão de cada dia!
Nesta trajetória de aprendizado e
militância, fé e cidadania, oração e ação, ternura e ousadia, a missão da Rede
Um Grito pela Vida e de forma mais ampla, a missão
em rede tem sido confirmada pela Vida
Religiosa Consagrada como um caminho de fidelidade dinâmica e criativa ao Deus da Aliança e de retomada
da radicalidade no seguimento de Jesus de Nazaré, pela possibilidade de
encarnação e visibilização dos carismas congregacionais nos espaços de
fronteira, revitalizando e atualizando as origens fundacionais, oportunizando,
a muitas religiosas/os e congregações o retorno aos pobres, ampliando a compreensão a cerca dos espaços e
formas e de ser presença solidária. Um sinal de vitalidade pessoal e
missionária para muitos e muitas.
Sua força de atração e credibilidade
tem despertado em muitos cristãos leigos/as o compromisso de uma fé
comprometida com vida onde ela se encontra ameaçada. Bem como, contribuído com o
conjunto da Igreja, na missão de ser advogada dos pobres, perita em dignidade.
Uma Igreja discípula e missionaria, atenta aos dramas humanos, especialmente os
mais vulneráveis. Uma igreja que não se limita aos espaços do templo, mas vai
ao encontro, se compromete e soma força com as lutas dos empobrecidos/as, como
dimensão intrínseca do seu compromisso com Jesus e o Reino por ele anunciado.
Passo a passo o caminho se faz
A cada passo nos deparamos com
esperanças e desafios que nos impulsionam a seguir fazendo história. No atual
estágio da caminhada da Rede um Grito pela Vida, podemos perceber que os desafios e esperanças se misturam num
mosaico de diferentes peças e cores, que evidenciam horizontes, provocações e
sinalizações para o presente/futuro de nossa missão nesta tessitura de profecia
em rede como Igreja e Vida Religiosa Consagrada.
A
partir do consenso em torno da
sacralidade da pessoa humana e da opção pelos pobres como Causa de Deus, abraçar e reafirmar cotidianamente a compromisso com
a defesa intransigente das pessoas
agredidas em sua dignidade, através de uma aguçada sensibilidade, abertura e
disposição para ouvir e acolher seus gritos, rompendo com a cultura da
indiferença, compartilhando a missão com os leigos/as, atuando em redes e
parcerias é imperativo divino. Esperança-desafio
para a Vida Religiosa Consagrada na
missão de ser no e para o mundo: Evangelho, Profecia e Esperança.
Nesta perspectiva, penso que o poema “Renova-te” de Cecília Meirelles,
pode nos provocar e animar a seguir firmes abrindo-nos sempre mais aos
horizontes da missão em rede no enfrentamento ao tráfico de pessoas e/ou outras
realidades de fronteiras.
Vida Religiosa Consagrada:
“Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo”. (Cecilia Meireles)
[1] - Nasceu em Aparecida de
Goiânia, GO. É Religiosa da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de
Maria, graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Piauí- UFPI,
Mestra em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo –
UMESP, Especialista em Gestão Social, pela UNISINOS, São Leopoldo, RS.
Coordenadora da Rede “Um Grito pela Vida” e membro da Coordenação do GT de
Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB. Reside em Manaus, AM. E-mail:
ireurides@hotmail.com
[2] GASDA, E. Élio. Tráfico de
Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, existência ética, missão da
igreja, em: Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo – II Seminário. Brasília,
Edições CNBB 2012. P. 32
[3] Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540674-vemos-a-realidade-melhor-da-periferia-do-que-do-centro-entrevista-com-o-papa-francisco.
[4] Cf cf. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011 – 2015. P. 17.18
[5] EG
52
[6] ANDRADE, Cesar William. No
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, tecer outra rede. Disponível em:
http://redeumgritopelavida.blogspot.com.br/p/reflexoes.html
[7]
Idem GASDA, 2012
[8] Disponível em
http://www.snpcultura.org/trafico_seres_humanos_e_vergonha.html
[9] Cf. Carta
apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da
Vida Consagrada.
[10] Cf. CASTELLS,
Manuel. A sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999
[11]
GUARÁ. Isa M. F R. (Coord.). Gestão municipal dos serviços de atenção à
criança e ao adolescente. 2. edição. São Paulo: IEE –
PUC-SP/CBIA, 2000
[12] Idem CASTELLs, 1999 P. 497
[13] LUSSI, Carmem& MARINUCCI,
Roberto. Notas sobre o trabalho em Rede. Disponível em:
http://www.csem.org.br/pdfs/notas_sobre_trabalho_em_rede.pdf
[14]
Idem. Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para
proclamação do Ano da Vida Consagrada.
[15]
CELAM. Documento de Aparecida – DA.
Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e
do Caribe. 5ed. Brasília: CNBB/Paulinas/Paulus, 2008, nº 402.
[16]
Idem.
Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para
proclamação do Ano da Vida Consagrada.
[17] Fragmento
do termo de compromisso de criação da Rede
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